Nesta entrevista especial, conversei com Lívia, enfermeira e especialista em cannabis medicinal, que compartilha conosco sua trajetória profissional, os desafios enfrentados e a importância da escuta qualificada no cuidado com o outro. Com uma visão humanizada, Lívia explica como a cannabis tem sido uma aliada no alívio de sintomas e consequentemente, no fortalecimento da autonomia dos pacientes. Uma conversa enriquecedora que amplia o olhar sobre o cuidado em saúde e quebra tabus com empatia e conhecimento.
1. O que é a cannabis medicinal e como ela age no organismo, especialmente em crianças?
A cannabis medicinal refere-se ao uso de compostos extraídos da planta Cannabis sativa para fins terapêuticos. Os principais componentes de interesse são os canabinoides, sendo o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) os mais estudados. No entanto, a planta contém muitos outros canabinoides, terpenos e flavonoides que também podem ter efeitos terapêuticos, atuando em conjunto no que se conhece como “efeito entourage”.
No organismo, os canabinoides interagem principalmente com o sistema endocanabinoide (SEC), um complexo sistema de sinalização celular presente em todo o corpo, incluindo o cérebro, sistema nervoso, sistema imunológico e órgãos. O SEC desempenha um papel crucial na regulação de diversas funções fisiológicas, como humor, sono, apetite, dor, inflamação e resposta imunológica.
As crianças também possuem o sistema endocanabinoide, e a cannabis medicinal pode modular esse sistema de maneiras diversas, dependendo dos canabinoides predominantes e da condição a ser tratada. Por exemplo, o CBD tem demonstrado propriedades ansiolíticas, anticonvulsivantes e anti-inflamatórias, atuando principalmente de forma indireta no SEC e em outros sistemas de neurotransmissão. Já o THC tem efeitos psicoativos mais pronunciados e atua diretamente nos receptores CB1 e CB2 do SEC, podendo aliviar dor e náuseas, mas seu uso em crianças requer cautela e geralmente em baixas doses, quando indicado.
2. Quais são as principais condições de saúde em que a cannabis é utilizada no tratamento infantil?
Embora a pesquisa em crianças ainda seja mais limitada do que em adultos, evidências científicas e a prática clínica têm demonstrado potencial terapêutico da cannabis medicinal em algumas condições pediátricas, como:
Epilepsias refratárias: Síndromes como Lennox-Gastaut e Dravet têm apresentado respostas positivas ao CBD, com redução na frequência e intensidade das crises.
Espasticidade na paralisia cerebral: Alguns estudos sugerem que a cannabis pode ajudar a reduzir a rigidez muscular e melhorar a qualidade de vida dessas crianças.
Transtorno do Espectro Autista (TEA): Pesquisas preliminares indicam que a cannabis pode auxiliar no manejo de sintomas como irritabilidade, agressividade e comportamentos repetitivos em alguns casos.
Dor crônica: Em situações onde outras terapias falharam, a cannabis pode ser considerada para aliviar a dor crônica em crianças.
Cuidados paliativos: Para crianças com doenças graves e progressivas, a cannabis pode ajudar no controle de sintomas como dor, náuseas e perda de apetite, melhorando o conforto e a qualidade de vida.
É importante ressaltar que o uso da cannabis medicinal em crianças deve ser sempre considerado como parte de um plano de tratamento abrangente e sob rigorosa supervisão médica.
3. Existe uma diferença entre o uso medicinal da cannabis e o uso recreativo? Poderia explicar para quem ainda tem dúvidas?
Sim, existe uma diferença fundamental entre o uso medicinal e o uso recreativo da cannabis, que reside principalmente na intenção, composição, regulamentação e supervisão médica.
Intenção: O uso medicinal tem como objetivo aliviar sintomas de uma condição médica ou melhorar a qualidade de vida do paciente, enquanto o uso recreativo busca o prazer e a alteração de humor.
Composição: Produtos medicinais geralmente têm concentrações específicas e controladas de canabinoides (predominantemente CBD ou combinações específicas com THC), além de serem submetidos a testes de qualidade e pureza. Já a cannabis para uso recreativo pode ter uma variedade maior de composições e não necessariamente passa pelos mesmos controles de qualidade.
Regulamentação: O uso medicinal da cannabis é regulamentado por órgãos de saúde e legislação específica, que definem as condições de uso, formas de acesso e padrões de qualidade. O uso recreativo, no Brasil, ainda é ilegal.
Supervisão médica: O uso medicinal sempre envolve a avaliação, prescrição e acompanhamento por um profissional de saúde habilitado, que monitora a eficácia e os possíveis efeitos colaterais. O uso recreativo não possui essa supervisão.
Em resumo, a cannabis medicinal é utilizada como um medicamento, com propósitos terapêuticos definidos, composição controlada e sob orientação médica, enquanto o uso recreativo não possui essas características e é motivado pelo lazer.
4. A cannabis medicinal causa efeitos colaterais nas crianças? Se sim, quais são os mais comuns?
Sim, como qualquer medicamento, a cannabis medicinal pode causar efeitos colaterais em crianças, embora a incidência e a intensidade geralmente sejam menores com produtos ricos em CBD e com baixas doses de THC. Os efeitos colaterais mais comuns relatados incluem:

Sonolência e fadiga: Especialmente no início do tratamento ou com doses mais elevadas.
Alterações no apetite: Tanto aumento quanto diminuição podem ocorrer.
Diarreia: Em alguns casos, pode haver desconforto gastrointestinal.
Irritabilidade: Paradoxalmente, em algumas crianças, pode ocorrer um aumento da irritabilidade.
Interações medicamentosas: A cannabis pode interagir com outros medicamentos, alterando seus efeitos.
É crucial que os pais estejam atentos a qualquer mudança no comportamento ou na saúde da criança e comuniquem imediatamente ao médico prescritor. O ajuste da dose e da formulação pode ser necessário para minimizar os efeitos colaterais.
5. Como é feita a prescrição da cannabis para crianças? Existe um protocolo específico?
A prescrição de cannabis medicinal para crianças no Brasil segue as diretrizes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e as boas práticas médicas. Atualmente, não existe um protocolo único e específico para a prescrição pediátrica, mas algumas diretrizes são importantes:
Avaliação médica: A prescrição deve ser feita por um médico habilitado, que avaliará cuidadosamente o histórico clínico da criança, as condições de saúde, os tratamentos anteriores e os potenciais riscos e benefícios da cannabis medicinal.
Individualização: O tratamento deve ser individualizado, considerando as necessidades específicas de cada criança, a condição a ser tratada, a formulação do produto (óleo, extrato, etc.) e a concentração dos canabinoides.
Início com doses baixas: Geralmente, o tratamento é iniciado com doses baixas, que são gradualmente aumentadas até se obter o efeito terapêutico desejado, monitorando-se de perto os possíveis efeitos colaterais.
Formas de administração seguras: As formas de administração mais comuns em crianças são os óleos e extratos, administrados por via oral (sublingual ou misturados a alimentos), evitando-se formas que possam ser mais palatáveis para uso indevido.
Consentimento informado: Os pais ou responsáveis legais devem receber informações completas e claras sobre o tratamento, incluindo os potenciais benefícios, riscos e alternativas, e devem dar seu consentimento formal por escrito.
Monitoramento contínuo: O médico deve realizar um acompanhamento regular da criança, avaliando a eficácia do tratamento e ajustando as doses conforme necessário.
A ANVISA regulamenta a importação e a fabricação de produtos à base de cannabis para fins medicinais, estabelecendo critérios de qualidade e segurança. A prescrição deve seguir as normativas vigentes.
6. Quais são os principais mitos que você enfrenta no dia a dia sobre o uso da cannabis medicinal?
“A cannabis medicinal é a mesma coisa que maconha para uso recreativo”: Como explicado anteriormente, há diferenças significativas na intenção, composição, regulamentação e supervisão médica.
“A cannabis medicinal vai deixar meu filho ‘drogado'”: Produtos ricos em CBD, que são frequentemente utilizados em crianças, não possuem efeitos psicoativos significativos. Mesmo produtos com THC são utilizados em doses baixas e controladas, visando o benefício terapêutico com o mínimo de efeitos colaterais.
“Não existem estudos científicos sobre o uso de cannabis em crianças”: Embora a pesquisa pediátrica seja mais limitada, há um crescente corpo de evidências científicas que apoiam o uso da cannabis medicinal em algumas condições infantis, especialmente epilepsias refratárias.
“Todos os produtos de cannabis são iguais e seguros”: A qualidade e a segurança dos produtos podem variar significativamente. É crucial utilizar produtos regulamentados, com análise de composição e adquiridos por vias legais.
“A cannabis medicinal é uma cura milagrosa para todas as doenças”: A cannabis medicinal pode ser uma ferramenta terapêutica valiosa para algumas condições, mas não é uma panaceia e deve ser utilizada dentro de um plano de tratamento individualizado e multidisciplinar.

7. Como os pais podem saber se a cannabis é uma opção segura para o tratamento dos seus filhos?
A decisão de utilizar a cannabis medicinal no tratamento de crianças deve ser tomada em conjunto com um médico experiente e atualizado sobre o tema. Os pais podem buscar segurança através dos seguintes passos:
Consultar um médico especialista: Procure um médico com experiência em cannabis medicinal e na condição específica do seu filho.
Buscar informações em fontes confiáveis: Informe-se sobre as evidências científicas disponíveis para a condição do seu filho, consultando artigos científicos, estudos clínicos e informações de órgãos de saúde.
Discutir abertamente com o médico: Faça todas as perguntas que tiver sobre os potenciais benefícios, riscos, efeitos colaterais, interações medicamentosas e alternativas de tratamento.
Verificar a procedência e a qualidade dos produtos: Certifique-se de que os produtos prescritos sejam de fontes confiáveis, com análise de composição e dentro das regulamentações da ANVISA.
Começar com cautela e monitorar de perto: Siga rigorosamente as orientações médicas quanto à dose e à forma de administração, e observe atentamente qualquer reação ou efeito colateral na criança.
Buscar apoio de outros pais e grupos de pacientes: Compartilhar experiências com outras famílias que utilizam a cannabis medicinal pode ser útil e trazer informações valiosas.
8. Existe alguma regulamentação no Brasil sobre o uso de cannabis medicinal em crianças?
Sim, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) possui regulamentações que abrangem o uso de cannabis medicinal no Brasil, incluindo crianças. As principais regulamentações incluem:
Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327/2019: Estabelece os procedimentos para a concessão de autorização sanitária para a fabricação e a importação de produtos de cannabis para fins medicinais, bem como os requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização.
Autorização para importação: A ANVISA também possui um processo para que pacientes (incluindo crianças, por meio de seus representantes legais) obtenham autorização para importar produtos à base de cannabis que não são fabricados no Brasil.
Embora não haja uma regulamentação específica e exclusiva para o uso pediátrico, as normas existentes se aplicam a todas as faixas etárias, com a ressalva da necessidade de avaliação médica individualizada e prescrição por profissional habilitado.
9. O tratamento com cannabis substitui outros medicamentos ou ele é usado em conjunto?
Na maioria dos casos, o tratamento com cannabis medicinal não substitui outros medicamentos, mas sim é utilizado como uma terapia complementar ou adjuvante. O objetivo é, muitas vezes, potencializar os efeitos de outros tratamentos, reduzir a dose de medicamentos com mais efeitos colaterais ou controlar sintomas que não respondem adequadamente às terapias convencionais.
A decisão de reduzir ou suspender outros medicamentos deve ser tomada exclusivamente pelo médico responsável, com base na avaliação da resposta da criança ao tratamento com cannabis e em um plano de desmame seguro e gradual, quando apropriado.
10. Você poderia compartilhar um exemplo (respeitando a privacidade, claro) de um caso infantil em que a cannabis trouxe melhora significativa?
Imagine uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) que apresenta sono irregular, irritabilidade e agressividade no seu cotidiano. Já acompanhei um caso assim, em que a criança começou a utilizar o Canabidiol e teve uma melhora significativa neste quadro apresentado.
A qualidade de vida da criança e da família melhorou consideravelmente, o que ainda não tinha sido possível com o tratamento convencional.
11. Quais cuidados são essenciais para as famílias que estão começando um tratamento com cannabis para seus filhos?
Escolher um médico experiente e de confiança: A orientação de um profissional qualificado é fundamental.
Informar-se sobre o tratamento: Busque informações em fontes confiáveis e tire todas as suas dúvidas com o médico.
Seguir rigorosamente as orientações médicas: Respeite as doses, horários e formas de administração prescritas.
Observar atentamente a criança: Monitore qualquer mudança no comportamento, humor, sono, apetite ou outros sintomas, e relate ao médico.
Manter a comunicação aberta com a equipe médica: Informe sobre outros medicamentos que a criança utiliza e qualquer outra terapia que esteja sendo realizada.
Armazenar os produtos de forma segura: Mantenha os produtos de cannabis fora do alcance de crianças e animais de estimação.
Ter paciência e realismo: Os resultados podem variar de criança para criança, e pode ser necessário um período de ajuste das doses para se obter o efeito desejado.
Buscar apoio: Conecte-se com outras famílias e grupos de apoio para compartilhar experiências e obter informações
12. Que conselho você daria para os pais que ainda têm medo ou receio de considerar esse tipo de tratamento?
Busquem informação baseada em ciência: Desmistifiquem o tema, procurando por estudos científicos e informações de fontes confiáveis, como sociedades médicas e órgãos de saúde.
Conversem abertamente com médicos especialistas: Exponham suas dúvidas e receios a profissionais experientes, que poderão fornecer informações claras e embasadas sobre os potenciais benefícios e riscos no caso específico do seu filho.
Considerem o custo-benefício: Avaliem a qualidade de vida atual do seu filho e o potencial da cannabis medicinal em aliviar sintomas e melhorar seu bem-estar, contrapondo aos possíveis riscos e efeitos colaterais, sempre sob orientação médica.
Lembrem-se que não estão sozinhos: Muitas famílias enfrentam dilemas semelhantes. Buscar apoio em grupos de pacientes e conversar com outros pais pode trazer conforto e informações valiosas.
Mantenham a mente aberta: A medicina está em constante evolução, e novas opções terapêuticas podem surgir. Não descartem uma possibilidade de tratamento com base em preconceitos ou desinformação. A decisão final deve ser informada e tomada em conjunto com a equipe médica, sempre priorizando o bem-estar da criança.
Até a próxima! Um grande beijo e fiquem com Deus 😉
Lívia Prado
Especialista em Cannabis sativa e Cannabis Medicinal pela Sociedade Brasileira de Estudos de Cannabis sativ (SBEC)
Membro da Sociedade Brasileira de Enfermagem Canábica (SOBECA)
Trabalha na clínica Brazileiro Alencar em Seabra, acompanhando pacientes em uso de Cannabis Medicinal
Instagram: @liviaprado.enfa